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sábado, janeiro 26, 2008

HOMEM INVISÍVEL - ODEMAR LEOTTI

Caminhava imerso em seu proceder. Ia, ia e ia... Parava, sentava, bebia. Parecia querer reencontrar a trilha que o levasse de volta ao passado. Coçava as rugosidades da pele, coçava a cabeça. Parecia querer forçá-la a voltar, a retornar. Não tinha mais a quem perguntar, bebia, bebia e bebia. Passava a costa da mão nos lábios com força. Rodava o olhar como se um radar fosse. Parecia procurar alguma fresta, algum cordão de sua Ariadne. Parece querer sair do labirinto. Baixava os olhos como que não encontrasse o fio que o conduziria para casa. Parecia um Ulisses de nossos tempos. Queria encontrar sua Penélope. Baixava os olhos e agarrava a garrafa de plástico. Quem era ele? Um infame da era do plástico. Ah! Que bom que é assim. A tecnologia facilitava seu trabalho. Bastava rodar a rosca, beber e rodar a rosca. E era isso que fazia. Rodava a rosca, abria a garrafa como se dali pudesse quem sabe sair um Aladim para realizar seus desejos. Seus desejos tão pequenos e tão distantes. Queria voltar para casa. Mas não mais existia casa. Queria voltar para os filhos. Mas não mais existiam filhos. Sua memória se atordoava... Parece. Coçava a frieira no vão do dedo do pé. O pé companheiro fiel que com paciência e dor aprendera a criar seus calos como seus próprios escudos. Pés calejados de andarilho. Andarilho ele era. Andava pra lá e pra cá. Porém às vezes parava para beber. Bebia de novo outro gole. Seus olhos arregalavam-se a procura do nada, nada existia além do que sonhava existir. Passava a mão pelo chão vermelho de sua grande morada. Esse chão que não era dele. Tinha que flutuar, porém não conseguia. Não podia habitar a terra. Ia beber outro gole. Ele precisa flutuar. Só no entorpecimento da mente ele se esvaia. Deste território desterritorializado, ele se ia, viajando no sabor do álcool e de seus efeitos, com seus devaneios desertores desta não sua mais vida. Cospe pra fora a cachaça com um empurrão. Alguém o enxotava. - vai trabalhar vagabundo! Flutuar não podia. Sonhava comprar um balão para morar flutuando... Mas não podia. Então se resignava, resmungava, juntava a tralha, rodava a rosca da tampa da garrafa de cachaça, apoiava a mão trêmula, com um gemido de ossos rangendo, avisando a fragilidade da carcaça, a instabilidade das pernas garantia o subir cambaleante. Seu ouvido já acostumado ouvia o de sempre daquele cristão: Some daqui seu pé de cana. Cambaleando saia como sempre, a procura de um outro canto. Ah! Já era quase meio dia. Precisava pedir a comida. Agüentar desaforos era agora a missão. Lá foi ele caminhando sem ter visto na tv que havia aumentado o PIB. Mal sabia ele que aumentou a taxa de desemprego. Só se lembra do aterro. Do aterro que encobriu seu barraco e enterrou sua família. Foi um dia de muita dor, muita gritaria. Ele também gritou. Gritou, gritou... Rosnava como uma fera, blasfemava e xingava sem parar. Quando não adiantava prostava-se de joelho e implorava a morte injusta que não levou todos quando estivesse em casa. Quando sentiu que já não adiantava voltou-se para o chão. Pegou a sua bolsa, tirou a marmita velha e amassada. Tirou depois a santinha, e apertou-a entre os dedos com força.Chorou, chorou, mais alto, mais alto, mais alto ainda, soluçou, abaixou a cabeça e chorou mais baixo, mais baixo, mais baixo, quase só se escutava soluços e choros roucos, quase um grunhido, vergava-se pela impotência de não mais reaver seus filhos, sua mulher. Com um misto de consolação e resignação parecia uma Pietá nos braços do nada, do nada, do nada... Enfiava a mão na sacola, mãos tremendo, tremendo, tremendo... Seria a hora mais cruel, parecia que as mãos não queriam sair da sacola. Seus olhos de novo inundavam de lágrimas, queriam chorar, chorar, chorar... Não havia mais lágrimas pra sair, mas mesmo assim soltava grunhidos roucos, bem baixo, quase um subterrâneo de coração. Soluços roucos e a coragem pulsaram e a mão saiu da sacola. Era um pacote com papel de presente, tinha sinos, desenho de pinheiro, folhas e muito dourado. Ele não se conteve, começou a xingar. Desgraça! Desgraça! Aiiiiiii meu Deus. Por que me desamparaste. Como que mais nada suas mãos tremendo esfregava o barro que continha no presente de Taninha: - Taninha .... Taninha ... Taninhaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!! Explodia em grito. Rasgou o pacote em ódio mortal, soluçava, alisava os cabelos. Gritava... - Ela tinha me pedido, ela tinha me pedido!!!!!!! Era só uma boneca do Paraguai, uma Barbye contrabandeada. Ela viu a americana, ele lhe daria a paraguaia. Gritava - Nem isso, nem isso. Ai meu Deus, nem isso? Soluçava... Baixinho como se ouvisse só uns grunhidos... Sóooooooo senhor? Só? Como que sem nada poder fazer encontrou um pequeno consolo. Rodando os olhos com o brilho reluzente das lágrimas incontidas viu uma pequena flagelada e falou: Toma filha eu não tenho mais Taninha. Numa fala chorosa e resignada soprava: Toma! Pega vai pega!Sem nada mais a fazer começou a andar sem rumo. Ir para onde. Não tinha mais lugar pra ficar, não há mais sair do serviço e voltar pra casa. Não há mais casa. Descia a encosta e caminhava. As ruas enlameadas, as casas enlameadas, as crianças enlameadas. O asfalto, a civilização a loja, a televisão, a notícia. Parou prestou atenção na mulher bonita que falava. E atenção para a última notícia. O governador reuniu-se com seu secretariado e declarou estado de calamidade pública. O número de mortos já passa de trinta. Várias casas foram soterradas. O governador esteve presente no local da tragédia. Amanhã viajará para Brasília em busca de mais verba para obras de contenção. Por hoje é só veja mais notícias no Jornal Nacional. Seu olhar parecia hipnotizado. Nem via a propaganda cheia de sinos anunciando a festa cristã. Para ele não existia mais Natal. Não existia para quem dar sua Barbye a não ser para outras crianças.Passava as mãos no rosto como que querendo limpar lágrimas. Elas não existiam mais. Bebe outro gole e segue. Precisava andar. Não podia flutuar. Andar e não parar. Mal podia parar e vinha alguém para lhe molestar. Sentou debaixo de uma árvore frondosa. Lá estava seu lar. Lá estavam os "pés inchados". Não sabiam se eram bichos ou se eram homens. O que é homem? O que é bicho?
Foto:www.southalabama.edu/saric/tim/graphics/drama.jpg

FLORES DA NOITE - Odemar Leotti

O mundo geme e se torna estridente. Abre-se em desarranjo aos desejos inconstantes e sem território. Seres indesejados e amados em suas irrupções incontroláveis. Esse que se faz nascer no escapar da malha capturadora. Mesmo por instante, na sombra da noite, a malha falha. Falhas, fendas, rachaduras fazem brotar flores com alma de borboleta. O mundo abre-se na ironia do trovador que ao aprovar dos risos vai rompendo o fardo do dia. As primeiras mostras de chamas aparecem lentas e tímidas, porém ameaçadoras. Como uma gargalhada despojada, despeja ironia numa noite ardente que se desfazia de seu fogo.
Num lugar qualquer de tantos lugares quaisquer. Nesses espaços desfeitos com seus tempos, seus espaços, seus desejos que pareciam jazer a tempos. Eis que eles reaparecem na voz dos menestréis. Tavernas, vinhos, cachaças, cervejas, gargalhadas na noite. Silvos de vozes quase descabidas e que ainda teimam em se colar em papeis esgarçados de tessituras pisoteadas: massas cinzentas que teimam irromper. Ingredientes de busca das caçadas, das caças cansadas que se deleitam durante o sono do caçador. Aproveitando do silenciar da noite para se abrirem, como flores em flor com o néctar do luar. Esse luar que parece ser o sol dos que o perderam e que teimam em aquecer a alma onde o corpo jaz sem o calor do dia.
A um silêncio e abrem-se em sorrisos etílicos, estilizando-se torpes e se crendo em seus embelezamentos. Sem pernas se aconchegam na ínfima fenda que pode vir morar com o corpo. Palavras que voltam pelo coração e equilibram nos corações que se agarram numa canção de ninar demônios. Estridências de seres desviantes em busca de realimentação de desejos demarcados. Fugas, reterritorializações, transbordamentos por sobre o vazio entediante da razão em sua arrogância totalizante. Fuga da sufocante, da causticante harmonia. Fuga regida por um uivo que abre o silêncio dos normais: as flores da noite se abrem com o riso, liberando desejos contidos e sujeitados. O riso desterritorializando o fardo do açoite do dia para dar lugar aos que não se acoitaram nos braços da essência prometida. Se negando a ficar preso a fundos e se espraiando nos lugares malditos se vingam com suas gargalhadas, deixando à mostra essa boca a todo instante calada. Os olhos, se antes estupefatos com os absurdos do dia, se fecham para dar lugar à voz estonteante, inaudível pelo discurso intolerante da implantação moral perversa.
Parecem que está ali como eles as palavras dos poetas que se fazem em fendas para atrair com beleza as coisas nesse mundo onde a palavra está tão longe da vida. Em meio a tanto discurso do progresso, ali naquele pequeno espaço buscam a felicidade: parece. Mesmo que fugaz se fazem dentro de seus ínfimos recônditos do pouco que sobrou desse “si mesmo”, desse “ser” que se fazia no emaranhado do mundo e que agora era forma que nada valia ao olhar do sábio. Como que aniquilados por formas de ser não condizentes com o corpo, que geme na aridez da distância das palavras. Essas palavras que nos abandonaram para morar no céu da razão e nunca mais voltaram. Essas palavras que deixaram de habitar o mundo e roçar seus poros. Foram morar na pureza e quedou o mundo profano tirando-lhe a propriedade do território de seus desejos.
Fuga dessa armadilha da verdade enfiada mansamente nas cantigas doces de fazer dormir. Ferramentas enfiadas nas falas doces da mãe bem intencionada. Na boca do professor que se achava iluminado, do pastor, do padre, do vizinho: essa coerção feliz fazendo do corpo moribundo e estrangeiro em si mesmo. Lá se foi a verdade inodora, incolor e não tateante. Inoculada goela abaixo moldando o sentimento, reconstruindo a memória. Véus sobre a chama do corpo carcomido.
Desviando do caminho em seus sorrisos no deserto da cidade. O gole abafa o triste fato: não há nada atrás da máscara. Não há outra verdade. O ato deu lugar ao fato inventado como o real. Quando nada mais aconchegava, veio a carência e restou o entorpecimento. Com ele se podia vislumbrar o vazio e o sonho por sobre o vazio. O nada vertiginoso e o pelejante: eis que pequenos instantes de vida, mesmo em sua intermitência, entre o dia e a noite pequenos fragmentos do que se pode chamar de vida se insurge na gargalhada. Esse gargalhar ressoa como se no afã da vida nomeasse o mundo. Como que agarrando ao entremeio da aparência desbotada e nada mais. Nada mais.
Esses rostos parecidos não ser dos escolhidos, seriam dos anjos decaídos. Anjos da noite que rompem com o silencio ensurdecedor dos que teimam dormir. São vigílias da vida que não cansam de teimar em nomear seus querubins. São risos. Durval Muniz diz que são risos do disparate da discórdia. Seriam guerreiros feridos pelo embate duro e surdo de uma guerra sutil que dão o nome de política? Harmonia impossível com nome de paz. Essa guerra que tenta ensarilhar as armas dos guerreiros. Essa paz instituída tem contra ela o sorriso incontido dos que não querem se entregar ao sono dos conformados. Se não lutam, também não dormem: se refazem nas gargalhadas da noite. Gargalhadas contra o domínio de verdades aniquiladoras. O que é são elas: como podemos saber. “Amor, humor, terror”, poetiza Durval. Flores da noite! Seria?
Foto:sarasvati29.spaces.live.com