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terça-feira, junho 15, 2010

DIÁLOGO ENTRE UM VIAJANTE E SUA SOMBRA

Para tentarmos um diagnóstico sobre o passado primeiramente temos que nos haver com procedimentos e as formas tais como tornou verdades nossa leitura sobre o passado. Para irmos direto ao assunto, o século XIX, foi um tempo onde a espacialidade do “interior” do país sofreu tentativas de reterritorializações. Devemos ligar para o entendimento da empresa de povoamento da, assim chamada frente oeste da fronteira do Brasil, às práticas discursivas que produziam subjetividades: a partir do início do século XIX, principalmente. Porém, se nos acurarmos aos estudos sobre a emergência de formas de saber na Europa desde a época clássica e do deslocamento das formas de análise que essas práticas realizaram com relação ao século XVI, entenderíamos que o problema maior reside muito mais nas formas de produção do passado do que no próprio passado. Poderíamos recuar um pouco mais no tempo e ver que as análises que ora prevalecem na leitura do passado, tem seus fundamentos em um saber produzido a partir de um sistema de pensamento do século XVII e não consegue sair dele com suas próprias ferramentas. Independente as diferenças aparentes das constituições sobre o passado, podemos até confundir a diferença entre espaço e tempo, pois o interior se confundia com o tempo primitivo, atrasado. Ao invés de ver diferenças os olhares viam formas do passado, ao qual, estava configurada sua forma de leitura do espaço. Portanto, alicerçado em uma busca da essência original, da matéria primordial do ser, o olhar sempre termina pairando na busca de uma origem que explicasse a identidade. No caso de Mato Grosso, essa busca de origem para a instituição de uma identidade nacional se afirmou com maior força no final do século XIX, com o advento da movimentação alimentada pelo republicanismo. Esse republicanismo não pode ser visto como tendo um sentido em si e sim como uma formação discursiva que carregava para além das bordas dos ditos e dos escritos as marcas de uma discursividade que lhe dava a conformação. Por outro lado o seu aspecto empírico é cenário da presença de corpos em suas tentativas de conciliar leis e natureza. Nesse espaço do visível e do inexplicável abria fendas para a criação que tomou formas singulares ao seu espaço e tempo.
O final de século XVII foi palco de uma ruptura produzida, onde a representação se desdobrou por sobre si mesma e criou uma consistência mais forte ainda no início do século XVIII se consolidando no início do século XIX, com o surgimento das ciências do homem. Para podermos entender com mais familiaridade o que se quer quando afirmamos sobre as produções que configuraram a imagem do homem, na forma tal qual o vemos emergir nos escritos historiográficos até nossos dias, é preciso rever nossa leitura a partir do período clássico europeu. O alongamento da argumentação desse tema, demanda tempo e espaço que escapa às necessidades que ora nos apresenta em nosso projeto. Porém ela será mais bem estendida quando da complementação dos estudos que retratam a instituição da forma de saber clássica que instituiu uma forma sistemática do ser inventando um homem com linguagem, vida e trabalho sistematizada no momento cartesiano e com uma missão de ser o sujeito da sua emancipação e do mundo tal qual aparece nos textos kantianos. Para falarmos em história, devemos entender a invenção desse Homem, com as questões não discursivas que foi a implementação do Estado Nacional e o projeto administrativo implantado por uma burguesia que despontava e que usurpou o poder da cultura guerreira e de sua forma de poder. Pra tanto é importante o cruzamento do estudo das formas de construção do passado com a tentativa da construção da figura do Estado e de sua fase republicana no Brasil. O que pretendemos é mostrar que paralelo a um espaço da escrita que inventava um passado, esse se dava como busca de uma origem nacional, voltada para a figura não mais de um olhar da Europa para o Brasil mas voltado para seu interior: inventar a partir daí uma origem da fusão das raças e com elas dos tempos: um tempo primitivo que se instituiu como espaço “atrasado” e uma cultura intelectual que se atribui a si mesmo o papel de reorganizar os nexos históricos e toda uma rede institucional de coerção a tentar implantar uma legitimidade do presente sobre as múltiplas ações dos homens.
Tomando o cuidado de não distanciar do problema que estamos enfrentando, gostaria de contabilizar o que já dissemos nesses parágrafos anteriores. No primeiro parágrafo, discorri de um problema que me levou à dificuldade de entender as explicações intrincadas da formação do quadro no século XVII. Sem entender bem foi ele que me veio ao pensamento quando quis escrever sobre o que o que estamos nos embatendo no momento de falarmos do passado, e no nosso caso específico, com o passado recente de Mato Grosso, está falando do “problema” quanto a forma de construir o “problema”. Não estaríamos falando que tal problema reside não no que o quadro invisível nos oferece, ou seja, a forma invisível onde estariam retratado os protagonistas de um tempo, colocado nesse quadro pelas mãos hábeis que deram volume a essa realidade. Esse seria a primeira camada, ou o primeiro ato da produção. Porém o quadro aparente parece mostrar – pelo menos à leitura que ora consigo fazer - um quadro onde o pintor retrata e é retratado pelo próprio expectador. Ou seria como que uma criatura estaria naquela situação dando-se à seu desdobramento sob o olhar do seu criador.. Aliás, entra ainda mais o meu lugar de leitor e de tantos outros que se põem a interpretar o passado como uma obra. Aí ainda reside uma nebulosa que não consegui me desvencilhar. Porem seguindo meio incerto à frente da obra, pela fuga dessa dificuldade de leitura, pude notar que essa representação como lugar do conhecimento sofre tal deslocamento no século XVII e sem sua discussão torna-se inócuo levarmos a efeito a discussão dos problemas que no presente nos afetam. Poderíamos também seguindo a linha do espelho, falar em sua proliferação de imagem que se multiplicam sem fim, mas, porém sem haver a possibilidade do novo. O que fica é somente repetição, impedindo os pontos de fuga. Gostaria de volta a isso após mais leituras de outros lugares.
A forma pela qual tento entender-me e fazer meu leitor, (aqui me incluo nesse “meu leitor”) entender, ou seja: a necessidade desse deslocamento nos procedimentos de pesquisa foi para entender que devemos estranhar as formas historiográficas que produziram essas proliferações sobre o passado. Com isso queremos problematizar as formas problematizadoras que as instituíram e deram ao nosso viver essa sintaxe, ou melhor, esse quadro tido como realidade.
Quando nos deparamos com discursos que nos parecem dispersos e sem haver um com o outro, fico preocupado se não seria nossa forma de leitura que estaria nos levando a ver tudo isso como dispersão. O sentido de dispersão e dissonância não é aí uma forma de poder que se faz funcionar quando nos damos a ver a partir do entendimento que as formas emergenciais são estanques umas às outras? Acho que a minha dor tem certo parentesco com a dor dos personagens e os lugares que foram reservados a eles, ou na extensão da proliferação espelhar, de todos nós. Como resultante disso temos que nos relacionar nesses espaços territorializados do saber historiográficos ou antropológicos encaixotados, fragmentados que nos deixam pouca margem para a criação. É comum ouvirmos certas afirmações com a que segue. Os índios devem ser objeto de estudo dos antropólogos. A sexualidade dever ser objeto de estudo dos estudiosos de gênero. Será que isso não seria a armadilha que às vezes caímos. Será que nossa incapacidade de sairmos do lugar de nossa subjetivação nos impede de superarmos essas familiaridades perversas. O que tem a ver a política indigenista com a história da sexualidade, o instituto histórico e geográfico e a vinda dos salesianos a Mato Grosso? Eis aí a grande tarefa: mostrar a inocência dos fatos, suas pretensas dispersões não seriam já em si frutos de uma artimanha do exercício do poder? Ou melhor, do exercício que deixe de ser uma verbalização e passa a ser apoderado em sua forma de ser, in síntese: um poder substancializado e que não se desfez para se renovar. As leis são pulsões que nos tiram do terror do nada e ajuda a constituir o nomos numa conjunção divinizada com a phisis. Não seria uma forma de abrigar as variações que obstam a possibilidade do contínuo, dos nexos das coisas, ou melhor, ainda, não seria a tentativa de harmonizar tudo que causa turbulência à formação dos nexos de uma história que se quer finalista e corretora das diversidades. Os pontos de fuga não seriam ao contrário as extensões multiplicadoras que fogem ao olhar normalizado e lhe causaria vertigem?
Quando nos remetemos a esses dois lugares da leitura – a nomeação e as coisas o fazemos para a necessidade de divinizar a vida como obra de arte e tudo se dá num emaranhado. Esse emaranhado é um espaço de agenciamentos de poderes imanentes ao ser e ele contém nosso aprendizado e nossa sexualidade: enfim o espaço da instituição do Estado Nacional na conceituada como Fronteira Oeste, teve como protagonistas múltiplas formas de ser e com ela se colocava em jogo exercícios de poder: exercícios religadores de leis e corpos.
O que queremos com isso? Não seria desvendar essa fronteira em que é colocada a identidade intelectual? Quando falamos de espaços imanentes o entendemos como de agenciamentos de desejos e com eles de um saber de sua efetivação divinizada como obra de arte. Portanto não estaria falando das palavras e nem das coisas e sim de uma fusão de ambas por um jogo de poder. De que estaria então falando então? Não seria das práticas discursivas instituídas que deram autoridade de fala a um poder configurado na imagem do Estado Nacional e com isso a toda uma reviravolta na forma de pensar do mundo? Se ligarmos a um fato de discurso em que o pensamento do século XVI, onde o ser das coisas se desloca do emaranhado do mundo, da semântica que era carregada de mistérios onde os signos tinham um valor absoluto em si, as coisas já estavam carregadas de significados que os assemelhavam. Se adentrarmos ao século XVII na Europa poderemos visualizar que o saber a partir daí, deserta desse emaranhado do mundo. Se antes o livro estava a serviço do desvendamento dos mistérios do mundo, na fase clássica o mundo é que deve se adaptar ao livro. O que era semelhança passa ser entendido como diferença, torna-se dado a ser coletado e tirado desse fervilhar rizomático para ser anexado a uma história universal da contingência. E só passa a irradiar sentido quando submetida a um sistema de pensamento.