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domingo, maio 16, 2010

ARTAUD: TEATRO E CULTURA

TEATRO E CULTURA

Antonin Artaud

Nunca, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e cultura. E existe um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para dirigir a vida.
Ante de retornar à cultura, constato que o mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura, e que apenas de um modo artificial é que se pretende dirigir para a cultura pensamentos que se voltam unicamente para a fome.
Mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou uma pessoa de ter fome e da preocupação de viver melhor, quanto extrair, daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica à da fome.
Acima de tudo precisamos viver e acreditar no que nos faz viver e que algo nos faz viver – e aquilo que sai o interior misterioso de nós mesmos não deve perpetuamente voltar sobre nós mesmos numa preocupação grosseiramente digestiva.
Quero dizer que se nos importamos todos com comer, e já, importa-nos ainda mais não desperdiçar apenas na preocupação imediata de comer nossa simples força de sentir fome.
Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são a reapresentação dessas coisas.
Não é que faltem sistemas de pensamento; a quantidade deles e suas contradições caracterizam nossa vida cultural européia e francesa: mas desde quando a vida, nossa vida, foi afetada por esses sistemas?
Não diria que os sistemas filosóficos sejam coisas para se aplicar direta e imediatamente; das de duas, uma:
Ou esses sistemas estão em nós e nos impregnamos deles a ponto de viver deles, e então que importam os livros? Ou não estamos impregnados por eles e nesse caso não merecem nos fazer viver; e, de todo modo, que importa se desaparecerem?
É preciso insistir nessa idéia da cultura em ação e que se torna em nós uma espécie de novo órgão, uma espécie de segunda alma: e a civilização é a cultura que se aplica que rege até mesmo nossas ações mais sutis, o espírito presente nas coisas; e é apenas de modo artificial que se separa a civilização da cultura e que há duas palavras para significar uma mesma e idêntica ação.
Julga-se um civilizado pelo modo como se comporta e ele pensa do modo como se comporta; mas já quanto à palavra civilizado reina a confusão; para todo mundo, um civilizado culto é m homem bem informado sobre os sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signos, em representações.
É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo essa faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos ao invés de identificar nossos atos com nossos pensamentos.
Se, falta enxofre à nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos, e nos perdermos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de sermos impulsionados por eles.
E esta é uma faculdade exclusivamente humana. Diria mesmo que é uma infecção do humano que nos estraga certas idéias que deveriam permanecer divinas, pois, longe de acreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem, penso que foi a intervenção milenar do homem que acabou por nos corromper o divino.
Todas nossas idéias sobre a vida têm de ser revistas numa época em que nada mais adere à vida. E esta penosa cisão é motivo para as coisas se vingarem, e a poesia não está mais entre nós e que quando não conseguimos encontrar mais nas coisas a vida, eis que ela reaparece, de repente, pelo lado mau das coisas; e nunca se viu tantos crimes, cuja gratuita estranheza só se explica por nossa impotência em possuir a vida.
Se o teatro existe para permitir que a recalcada viva, uma espécie de atroz poesia expressa-se através de atos estanhos onde as alterações do fato de viver mostram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria dirigi-la melhor.
Por mais que exijamos a magia, porém, no fundo temos medo de uma vida que se desenvolveria toda sob o signo da verdadeira magia.
E assim nossa ausência enraizada de cultura espanta-se diante de certas grandiosas anomalias e é assim que, por exemplo, numa ilha sem qualquer contado com a civilização atual a simples passagem de um navio contendo apenas pessoas sadias pode provocar o aparecimento de doenças desconhecidas nessa ilha e que são especialidade de nossos países: zona, influenza, gripe, reumatismos, sinusite, polinevrite, etc. etc.
E, também, se achamos que os negros cheiram mal, ignoramos que para tudo aquilo que não é Europa somos nós , brancos, que cheiramos mal. E diria mesmo que exalamos um odor branco, branco assim como se pode falar num “mal branco”.
Assim como o ferro aquecido ao branco, pode-se dizer que tudo que é excessivo é branco; e para um asiático a cor branca tornou-se a insígnia da mais estremada decomposição.

( * )

Isto dito pode-se começar a extrair uma idéia da cultura, uma idéia que é primeiro um protesto.
Protesto contra o estreitamento insensato que se impõe à idéia da cultura ao se reduzi-la a uma espécie de inconcebível Panteão – o que provoca uma idolatria da cultura, assim como as religiões idólatras põem os deuses em seus Panteões.
Protesto contra a idéia separada que se faz da cultura como se de um lado separada que se faz da cultura, como se de um lado estivesse a cultura e, do outro, a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio apurado de compreender e de exercer a vida.
Pode-se queimar a biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros, existem forças: podem nos tirar por um tempo a faculdade de reencontrar essas forças, não se suprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam algumas facilidades exageradas e que certas formas caiam no esquecimento, assim, a cultura sem espaço nem tempo, e que nossa capacidade nervosa contém, ressurgirá com redobrada energia. E é justo que de tempos em tempos produzam-se cataclismas que no incitem a retornar à natureza, isto é, a reencontrar a vida. O velho totemismo dos animais, das pedras, dos objetos encarregados de fulminar, das roupas bestialmente impregnadas, em resumo tudo que serve para captar, dirigir e derivar forças é, para nós, coisa morta de onde só sabemos agora extrair um proveito artístico e estático, um proveito de fruidor e não um proveito de ator.
Ora, o totemismo é ator porque se mexe, e existe para atores; e toda verdadeira cultura apóia-se nos meios bárbaros e primitivos do totemismo, cuja vida selvagem quero adorar, isto é, uma vida inteiramente espontânea.
O que nos fez perder a cultura foi nossa idéia ocidental da arte e o proveito que disso tiramos. Arte e cultura não podem andar juntas, contrariamente ao costume universal!
A verdadeira cultura age por sua exaltação e sua força, e o ideal europeu da arte visa jogar o espírito numa atitude separada da força e que fica assistindo a sua exaltação. É uma idéia preguiçosa, inútil, e que, a prazo curto, acarreta a morte. Se as múltiplas voltas da Serpente Quetzalcoatl são harmoniosas é porque expressam o equilíbrio e os desvios de uma força adormecida; e a intensidade das formas existe apenas para seduzir a captar uma força que na musica, desperta um lancinante teclado.
(...)
Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro; e o importante é não acreditar que esse ato deva ser algo sagrado, isso é, reservado. O importante é crer que todos podem fazê-lo e que para isso é preciso uma preparação.
Isto leva à rejeição das limitações habituais do homem e dos poderes do homem e a tornar infinitas as fronteiras do que chamamos de realidade.
É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não existe, e o faz nascer. E tudo que ainda não nasceu pode vir a nascer contanto que não nos contentemos com ser simples órgãos de registro.
Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavra vida deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de frágil e turbulento núcleo no qual as formas não tocam. E se ainda existe algo de infernal e de verdadeiramente maldito nestes tempos, trata-se desse demorar-se artístico sobre as formas ao invés de ser como os supliciados que se queimam e que fazem signos em suas fogueiras.

Antonin Artaud in O teatro e seus duplos.

ARTAUD, NIETZSCHE E A FRAGILIDADE E CONSISTÊNCIA DAS PALAVRAS

ARTAUD, NIETZSCHE E A FRAGILIDADE E CONSISTÊNCIA DAS PALAVRAS

Odemar Leotti

Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página: por isso a palavra escrita é muito triste. Mario Quintana.


Cuidemos de tudo que decida nossa vida. Nossa vida? Não a temos pronta. A temos sempre sendo, sempre sendo e sempre tecida no dia a dia. Esse fazer constante da vida pelas palavras, através das palavras tornadas signos encadeados. Feita de palavras, mas antes de tudo dentro de um espaço político. Político entendido como um campo de guerra de todos contra todos. É nessa interface entre as palavras e as coisas que se dá o teatro político. Entendendo nesse caso política como continuidade da guerra por outros meios em uma terra conquista e usurpada pela força. A vida como “lugar da improvisação e da rigorosidade matemática, como no teatro. As coisas estão por aí, devemos buscá-las procurando, como”Artaud procura uma linguagem através dos signos, de gestos e objetos, com a ‘importância dos sonhos’”. Para ele, a reunião que cada qual faz da palavra obedece a leis, diria a regras de sua aparição, segundo Foucault. Leis e regras são coisas dos homens e o mundo nasce das semelhanças das palavras. A diferença surge das analogias que tomam assento em novas territorialidades violentando-as e tornando-as contaminada de novas territorialidades da ocupação de seu espaço. Esse espaço das palavras sofre com essas capitulações, novas analogias de sua formação e é dentro dele que os corpos se movem e é aí que as relações que emanam de cada imanência se cruzam, se resvalam, se contaminam e formam novas territorialidades diferidas no espaço e no tempo. Novas palavras, novas violações da natureza das coisas. Ideogramas da China, hieróglifos egípcios como afirma Artaud. Eu acrescentaria que para nós as formas das escritas Astecas, Incas, da infinitude dos mistérios das múltiplas culturas das sociedades aqui existentes antes do ato de conquista. Estas formas de vida forram submetidas pela guerra de conquista e depois essa guerra tomou forma em guerra dos sentidos. Tudo se tornou um emaranhado de sentidos, mas predominou como saber dominador, o do invasor em sua tentativa de supressão do espaço das multiplicidades, tanto das culturas quanto de sua transmigração para o interior de cada um. O que podemos dizer que primeiro foi a guerra depois a política como sua continuidade.
Não podemos generalizar a vitória de um lado, pois as contaminações se dão de todos os lados no embate dos sentidos e de suas apropriações infinitas no tempo e no espaço. Foram contaminados pelos europeus, mas estes se contaminaram com os saberes e podemos dizer inclusive fizeram uso dessas culturas em situações complicadas que trazem e trarão grandes problemas, tais como o uso de drogas adquiridas com essas culturas. Portanto antes de a eles se “submeterem” os submeterem a novas analogias misturadas e disfarçadas pelas simulações, porém mesmo não sendo intencional, podemos dizer que o próprio ato de apropriação se dá com cada forma do estabelecimento das leituras e das condições de sua produção e não unicamente como quer um tipo de historiografia. É nesse palco improvisado e rigoroso em suas formas análogas das palavras e dos símbolos que nos sentimos sendo, nesta terra mundializada em tantos mundos e em suas digladiações simbólicas.

"O Pesa nervos", “a vida é queimar perguntas”, o que deve reportar a Pedro Abelardo, [30 nota] dando um passo além de Descartes: a dúvida não deve ser apenas metódica até alcançar a evidência, mas a atividade mental deve ser levada a um tal ponto de interrogar-se que chegue à "destruição da evidência".

Pode-se observar nisto tudo a palavra dançando na linguagem, tirando dela toda a sua solidez e, mostrando toda sua bela imperfeição. Instauro-me no nada, no solo inseguro da linguagem que me desmonta, me destitui e me faz ser um eterno guerreiro da vigília do entendimento do mundo. Mundo foi feito para ser feitura constante onde eu seja seu protagonista da feitura. E isso não para de ser assim. Se não fazemos de forma salutar as coisas nos vêm de forma perversa e destruidora. Como nos afirma Hölderlin, as palavras servem para fazer a vida e para enunciar a morte. Vivemos nessa vertigem constante. Não podemos entregar sua feitura a outrem. O estanhar do mundo é uma constância na luta em torno dos sentidos. O que nos oferecem como forma pronta pode ser nossa destruição naquilo que nos caracteriza como ser pensante. Portanto a evidência deve ser usada e descartada ou nem mesmo usada, porém o importante é que não aceitemos nada com evidência definitiva, e devemos sim perseguir a resposta e massacrá-la com novas perguntas. Os sentidos são como uma teia de aranha: é frágil a ponto de se desmanchar a um leve toque de dedo, porém tem a consistência e a solidez ao enfrentar a mais forte tempestade. Ao encontrarmos uma teia em um ramo de árvore e o a tocarmos se desmancha facilmente, porém se quebrarmos essa galha e a jogarmos a um mar enfurecido, a teia flutuará e se condicionará no relevo de suas ondas e sairá intacta. Essa metáfora da teia, nos presenteada por Nietzsche, serve para entendermos que a vida é feita de signos, de sentidos produzidos na linguagem, e, portanto tem a fragilidade de se desmanchar a um pequeno toque e a consistência de suportar as mais terríveis avalanches. A vida é produto de nossa eterna vigília e tessituras infinitas. É isso a vida: o nada e o ser-no-mundo, sendo feito e refeito onde somos artistas de nós mesmos.