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quinta-feira, dezembro 20, 2007

OI EU! TUDO BEM? - Odemar Leotti

Os lábios mudos ainda beijam o rosto pálido. Vergado pela gravidade, mas ainda macio. Gestos de sonhar em busca de poesia. Frestas acochadas pela parede que impede a saída. O espelho não me conta de meu ser: quem é, se é isso que penso? Não... Não é o espelho. A marca que fustiga meu estar comigo, meu ato de trazer o meu ente para morar comigo, está em outro lugar. Está em lugar que não o de meu corpo e do espelho.
Uma verdade arremessou esse corpo para bem longe de mim. Nem o espelho, nem eu. Uma parafernália de vozes me sufoca, impelindo esse corpo para sua negação. O saber sobre ele já não mais lhe pertence. Já não saem mais dos meus recônditos, as minhas formas de ter o meu ser. Lugares confiscados por um uma busca essencial para os sentidos de meu ser. E eu? Fico aqui esperando outra forma futura? E a criança infantilizada e postergada? E a adolescência onde me deixaram entre os brinquedos e Deus? E as ameaças caso não desfizesse de meu mundo lúdico?
Mandaram-me para frente de trabalho. Meus desejos viraram energia para a grande marcha. Penhoraram minha vida em troca de salário! Toda essa perversidade implantada em minh’alma! E o que vejo agora? Rugas. Pálpebras escuras. Bolsas sob os olhos. Como posso refazer o que foi desfeito? O que o meu eu opõe ao espelho? A discursividade avassaladora que inventou meu viver? E ainda me pedem para me consolar? Vozes a me dizer o lugar?
Classificar-me? De novo me oferecer um lugar? Números novamente? Primeira idade confiscada, interditada? Segunda idade recrutada? Terceira idade segregada? É isto que estão me oferecendo? Ainda querem me dizer para onde ir? Como diz Régio, o poeta: eu vou é por aí! Eu quero um pouco do que me restou. Preciso garantir o silêncio que me restitua formas de liberdade. Devolver-me à minha desmedida. Eu para meu corpo. Para um saber que não me ensine para onde vou. Fazer com que eu me encontre.
Eu, o espelho, sem reflexos. Espelho sem reflexos, palavras de volta à sua profanidade. Eu e o eu espelhado sem medidas, sem adjetivos, sem substantivos. Verbo dever colocado sob suspeita. Soltidão? Quem sabe essa palavra será inventada! Quem sou não há mais, fico sendo, mesmo que seja por efêmeros instantes. Como era não é mais. Como serei? Si serei? Não sei. Sendo na desmessura do ser, livre de marcas aferradas em brasa, pelo discurso implacável. Eu, meu corpo, e o silêncio que me alforria. Nem as palavras me machucam, nem as coisas me negam a vida, elas escaparam de mim, no ricocheteio do discurso perene: discurso nos tempos a violentar o espaço-corpo da minha existência: classificado, medido, especificado, particularizado, por uma ordem que se quer universal. Rechaçado em toda sua heterotopia jovial, em troca de uma iluminada utopia.
Palavras que serviam para a vida traduziram-se em morte. Se a vida se dá por fluxos, a ela foi parcimonizada, esterilizada, tornada raridade. Silêncio: eis o que me resta. Silêncio de criança e o eu voltando para sua antiga morada. Alegria das suas porosidades inibidas. Uma moral causticante que tornou árido o desejo sensorial. O filho pródigo volta ao seu antigo lar. Eu, o espelho e nada mais. Oi eu! Tudo bem?

Foto:www.contosdeterror.com.br/oespelhodaestalagem.jpg