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sábado, janeiro 26, 2008

FLORES DA NOITE - Odemar Leotti

O mundo geme e se torna estridente. Abre-se em desarranjo aos desejos inconstantes e sem território. Seres indesejados e amados em suas irrupções incontroláveis. Esse que se faz nascer no escapar da malha capturadora. Mesmo por instante, na sombra da noite, a malha falha. Falhas, fendas, rachaduras fazem brotar flores com alma de borboleta. O mundo abre-se na ironia do trovador que ao aprovar dos risos vai rompendo o fardo do dia. As primeiras mostras de chamas aparecem lentas e tímidas, porém ameaçadoras. Como uma gargalhada despojada, despeja ironia numa noite ardente que se desfazia de seu fogo.
Num lugar qualquer de tantos lugares quaisquer. Nesses espaços desfeitos com seus tempos, seus espaços, seus desejos que pareciam jazer a tempos. Eis que eles reaparecem na voz dos menestréis. Tavernas, vinhos, cachaças, cervejas, gargalhadas na noite. Silvos de vozes quase descabidas e que ainda teimam em se colar em papeis esgarçados de tessituras pisoteadas: massas cinzentas que teimam irromper. Ingredientes de busca das caçadas, das caças cansadas que se deleitam durante o sono do caçador. Aproveitando do silenciar da noite para se abrirem, como flores em flor com o néctar do luar. Esse luar que parece ser o sol dos que o perderam e que teimam em aquecer a alma onde o corpo jaz sem o calor do dia.
A um silêncio e abrem-se em sorrisos etílicos, estilizando-se torpes e se crendo em seus embelezamentos. Sem pernas se aconchegam na ínfima fenda que pode vir morar com o corpo. Palavras que voltam pelo coração e equilibram nos corações que se agarram numa canção de ninar demônios. Estridências de seres desviantes em busca de realimentação de desejos demarcados. Fugas, reterritorializações, transbordamentos por sobre o vazio entediante da razão em sua arrogância totalizante. Fuga da sufocante, da causticante harmonia. Fuga regida por um uivo que abre o silêncio dos normais: as flores da noite se abrem com o riso, liberando desejos contidos e sujeitados. O riso desterritorializando o fardo do açoite do dia para dar lugar aos que não se acoitaram nos braços da essência prometida. Se negando a ficar preso a fundos e se espraiando nos lugares malditos se vingam com suas gargalhadas, deixando à mostra essa boca a todo instante calada. Os olhos, se antes estupefatos com os absurdos do dia, se fecham para dar lugar à voz estonteante, inaudível pelo discurso intolerante da implantação moral perversa.
Parecem que está ali como eles as palavras dos poetas que se fazem em fendas para atrair com beleza as coisas nesse mundo onde a palavra está tão longe da vida. Em meio a tanto discurso do progresso, ali naquele pequeno espaço buscam a felicidade: parece. Mesmo que fugaz se fazem dentro de seus ínfimos recônditos do pouco que sobrou desse “si mesmo”, desse “ser” que se fazia no emaranhado do mundo e que agora era forma que nada valia ao olhar do sábio. Como que aniquilados por formas de ser não condizentes com o corpo, que geme na aridez da distância das palavras. Essas palavras que nos abandonaram para morar no céu da razão e nunca mais voltaram. Essas palavras que deixaram de habitar o mundo e roçar seus poros. Foram morar na pureza e quedou o mundo profano tirando-lhe a propriedade do território de seus desejos.
Fuga dessa armadilha da verdade enfiada mansamente nas cantigas doces de fazer dormir. Ferramentas enfiadas nas falas doces da mãe bem intencionada. Na boca do professor que se achava iluminado, do pastor, do padre, do vizinho: essa coerção feliz fazendo do corpo moribundo e estrangeiro em si mesmo. Lá se foi a verdade inodora, incolor e não tateante. Inoculada goela abaixo moldando o sentimento, reconstruindo a memória. Véus sobre a chama do corpo carcomido.
Desviando do caminho em seus sorrisos no deserto da cidade. O gole abafa o triste fato: não há nada atrás da máscara. Não há outra verdade. O ato deu lugar ao fato inventado como o real. Quando nada mais aconchegava, veio a carência e restou o entorpecimento. Com ele se podia vislumbrar o vazio e o sonho por sobre o vazio. O nada vertiginoso e o pelejante: eis que pequenos instantes de vida, mesmo em sua intermitência, entre o dia e a noite pequenos fragmentos do que se pode chamar de vida se insurge na gargalhada. Esse gargalhar ressoa como se no afã da vida nomeasse o mundo. Como que agarrando ao entremeio da aparência desbotada e nada mais. Nada mais.
Esses rostos parecidos não ser dos escolhidos, seriam dos anjos decaídos. Anjos da noite que rompem com o silencio ensurdecedor dos que teimam dormir. São vigílias da vida que não cansam de teimar em nomear seus querubins. São risos. Durval Muniz diz que são risos do disparate da discórdia. Seriam guerreiros feridos pelo embate duro e surdo de uma guerra sutil que dão o nome de política? Harmonia impossível com nome de paz. Essa guerra que tenta ensarilhar as armas dos guerreiros. Essa paz instituída tem contra ela o sorriso incontido dos que não querem se entregar ao sono dos conformados. Se não lutam, também não dormem: se refazem nas gargalhadas da noite. Gargalhadas contra o domínio de verdades aniquiladoras. O que é são elas: como podemos saber. “Amor, humor, terror”, poetiza Durval. Flores da noite! Seria?
Foto:sarasvati29.spaces.live.com

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