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sábado, fevereiro 16, 2008

PIRATA V I D A - ODEMAR LEOTTI

Mando-te um disco pirata. Um pirateado manda um pirata. Corsários do mar, piratas da rainha, serviçais dos reis, guardas dos portais. Eis-me aqui perante vós, além do espaço, além dos tempos. Pois resistem ao tempo, transformam-se. Tais como ilusionistas do tempo e do espaço, impelem-se contra nossos corações, confortando-os como se realmente os amassem. Mera ilusão, dilaceramento. Como hienas de carnes sobrepujadas por feras maiores, rasgam nossos despojos, arrastam nossas dilaceradas carnes pela poeira de uma terra violentada. Eis-me aqui Senhor dos tempos, Deus do altar das verdades. Salvem os propositores do saber das badaladas do nosso coração.
Cá estamos piratas, flagelados, capengas, caolhos, mas caminhando por estradas não construídas por nós, pelas quais esfolamos nossas mãos e joelhos para conseguir garantir o direito de caminhar. Cá estamos, nos todos piratas. Vida pirata: criança pirata, filho de uma mãe pirata, que leva uma vida pirata, cronometrada por um relógio pirata, com sua roupa de ‘marca’ pirata, com um batom pirata, com uma comida pirata, com um sentimento pirata.
Corsários do mar da rainha, não mais o mar de Deus. Caminha-nós os piratas, ouvindo nossos discos piratas, ouvindo nossos pais de santo. Esses considerados como psicólogos piratas, nossos curandeiros, nossas rezadeiras, nossas benzedeiras, pastores, todos os motivos de risos nas novelas, nas conversas de consultório de classe média, de bares dos eleitos da verdade original, para eles somos todos piratas. Mal sabem eles que estão embutidos em um corpo pirata, em um conceito de riqueza pirata.
Piratas que curam crianças piratas, velhos piratas, mulheres piratas vendendo salgadinhos com condimentos piratas e como pagamento recebem passes de ônibus, serviçal como dinheiro pirata. Depois de tudo que um dia pirata me transtorna, vou ao bar beber em um cristal renegado pelo corrupto por ser pirata, e aí bebo um cálice pirata que vai entranhar meu fígado pirateado por invasões mil de comidas e bebidas piratas, carregadas de agrotóxicos.
Piratas que matam a torto a direita a esquerda porque não puderam ter a oportunidade de entender por que um ministro economista não resolveu seu problema de saúde.
Pausa para beber uma cerveja que não é pirata. Estou refeito do ódio, mas não refeito da indignação de ver tantos olhares tontos, tristes passando em seus caminhares incomodando com seus cheiros os olhares de almas dos que também não tiveram chance de escolher um caminho próprio. Filhos de ricos que um dia também foram crianças, e que não são maus e sim produtos de uma racionalidade que os fizeram piratas do rei, corsários da rainha. Não devemos odiá-los, e sim combatê-los como tais nos combatem.
Que desconexo que virou a vida, que paradoxo, trocar o saber que pagamos para ter e não temos e quando temos é com desprezo, com desdém. Ouvir a felicidade de alguém que pagou o médico qualificado pela verdade que foi-nos negada, e que buscamos em nossos saberes longínquos e hoje tidos como pirata. Buscar as raízes hoje piratas, raízes de pau, da memória dos fragmentos que nos negam e que teimamos em manter. Clamamos ao oráculo de Delfos, conclamamos ás mães de santo, aos curandeiros, aos xamãs, aos conselheiros, às guardiãs das memórias: Vigília Eterna.
Foto: www.overmundo.com.br/_overblog/img/1159288873_overmundo_disco_pirata.jpg

A GUERRA SILENCIOSA E OS GRITOS REBELDES - ODEMAR LEOTTI

“O passado pesa e oprime ‘como um pesadelo o cérebro dos vivos’ e que, sobretudo enquanto historiadores, deveríamos compreender o momento do acerto de contas e ‘alegremente’ despedirmos-nos do passado” Karl Marx.

Não sabemos o que de pior possa estar ferindo nossos olhos. Se, é a forma de violência com que a sociedade constrói quando alguns de seus “sócios”, resolvem não mais obedecer ao contrato social ou se é ficar a ouvir apelos morais que de nada adiantam. Apelos que ficam eivados de hipocrisia daqueles que não podem ultrapassar os limites de sua subserviência. Vivem como lacaios de uma minoria que lhe garante algumas benesses salariais e mais e mais vantagens colocando-os entre uma minoria de apaniguados da corte.
O que nos interessa é que é esta crise dessa forma de poder que está instalada está construindo o anúncio de uma trágica sina. Caso não mude sua rota de colisão se tornará inevitavelmente uma bomba relógio que já está sendo detonada pouco a pouco. De nada adianta os discursos jornalísticos e suas arrancadas emocionais. O que precisamos fazer é ter coragem de arrancar a casca da ferida e parar com a hipocrisia.
Até a pouco tempo o estudo da sociedade tem obedecido a paradigmas estruturalistas que não conseguem ultrapassar os limites do discurso de esquerda e direita. Nesse sentido estes estudos tiveram como predominância a economia. No século XIX, se construiu um sonho alimentado pelo projeto inicialmente nos parâmetros iluministas de busca de uma racionalidade absoluta. Servindo-se de um sistema de signos formado pelo discurso do século XVII, na Europa, apontava para uma onda de emancipação humana que constituiria a humanidade perfeita.
Tanto o seu lado liberal como seu detrator marxista teve a economia como modelo de análise: o primeiro apontando para a promessa do desenvolvimento econômico que arrastaria com ele o desenvolvimento social. O segundo caso se caracterizava como de oposição a este projeto e apontava para a via socialista de economia. Após a Segunda Grande Guerra, o que observamos foi a frustração do modelo liberal de um lado que desembocou no fascismo, no nazismo etc. No lado socialista tivemos a decepção que foi a ditadura stalinista. Então devemos voltar nossas leituras para Michel Foucault que aponta nisto tudo um excesso de poder. A economia já não é suficiente para estar explicando a crise social de nossos tempos. Se o problema era o desenvolvimento econômico para suprimir as deficiências sociais, que apesar do exemplo triste do pós-guerra e de sua face totalitária, vemos com tristeza, a convivência da opulência lado a lado com a miséria.
Para poder elaborar outro modelo de análise que não fique neste mesmismo que vemos nos discursos acadêmicos quanto no discurso jornalístico, precisamos deslocar o conceito de política e de poder. Se até agora partimos de modelos de economia e política próprias do discurso sistemático que fica preso ao modelo tradicional, devemos construir um deslocamento neste tipo de análise.
Portanto, devemos voltar nossos olhos para a leitura de Foucault sobre poder e política. Invertendo o aforismo de Claussewitz que afirmava ser a guerra a continuidade da política por outros meios, aponta o contrário desse entendimento. Para ele, é a política sim a continuidade da guerra por outros meios. Uma guerra silenciosa que fez dos descendentes dos guerreiros subjugados filhos do apagamento de suas identidades memoriais. Criou-se todo um processo de formação educacional como mecanismo de silenciamento do discurso de raças, tanto na França como na Inglaterra.
No Brasil a forma de conquista operada pode ser configurada como fator de conquista e dominação. O conceito de região nasce de sua origem latina regere (reger). Nesse caso obedece a uma função que é colonizar a serviço do poder régio, que cria com sua derivação as regras, os regimentos, os regimes. O termo Província no latim se escreve provincere, “pró-vencedor”. Assim vemos no caso do Brasil a instalação, durante o Segundo Império de instituições ao serviço da conquista como a Guarda Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, a Diretoria Geral dos Índios e a Lei da Terra, entre outras formas de instalação de uma nova forma de dominação: a política de dominação, essa guerra silenciosa.
A Guarda Nacional exerceu no caso do Brasil e de Mato Grosso o papel de instalação de destacamentos e fortalezas que tinham como função expandir para freguesias e depois cidades a serviço do povoamento da fronteira oeste. A política indigenista instalou em cada província as Diretorias Gerais dos Índios, que tinham como função a redução indígena e a transformação de seus territórios em terras devolutas. A Guarda Nacional cumpria sua função de praticar invasões dos territórios indígenas e seqüestro de suas crianças para serem “educados”, nos moldes “civilzatórios”, no caso da Província de Mato Grosso no Arsenal, principalmente. Enquanto isso a fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil cumpria o papel de uma guerra que era a de construir uma memória do passado que apagasse a identidade guerreira das várias culturas indígenas do Brasil e implantasse uma história corretiva das culturas “errantes”. Tudo isso garantiria a promulgação da Lei da Terra, inventada durante um congresso de latifundiários em Taubaté, na Província de São Paulo, que transformava as terras tornadas devolutas pela lei instituída pela política indigenista, em mercadorias mercantilizadas. Devemos mostrar que o Brasil foi fruto das guerras militares. Depois consolidado o poder do vencedor com a instalação dessa guerra silenciosa que garantiu essa situação anômala de silenciamento da memória da cada uma dessas culturas. Mostrar que essas instituições fizeram com que os descendentes dessas culturas esquecessem a massa cinzenta do passado. Com isso fazê-los lembrar que a luta de raças transformou-se em luta de classes para fazer com que se sentissem pertencendo a uma nação.
Hoje é preciso desconstruir essa forma jurídica com que teima em ensinar a história do passado. É preciso desconstruir essa memória para se construir uma forma guerreira com o que sobrou. Esse papel cabe unicamente a uma arqueologia do saber sobre o passado e uma genealogia das contingências históricas em que se implantou um saber que garantia o poder de uma minoria sobre os demais.
A realidade está aí mostrando que a violência urbana nada mais é que fruto dessa guerra surda e silenciosa disfarçada de construção do progresso nacional. É hora de por fim a um discurso que fica preso às estruturas de pensamento que ainda sonha com esse modelo iluminista. A educação serve mais ao papel da dominação do que da formação de um povo que lute pelos seus direitos. Vejam a apatia dos educandos: isso é fruto desse comprometimento com um estado dominador. Hoje o Movimento Sem Terra e o a cultura HIP HOP são exemplos que as multiplicidades são substâncias concretas e se fazem na luta pela vida. Viva e verá a luta anunciada contra essa guerra silenciosa implantada de forma perversa contra as culturas subjugadas pela guerra militar. Essa memória cinzenta irá refazer-se como a ave fênix.
Foto:portugal.blogalaxia.com/busca/planeta