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quarta-feira, maio 17, 2006

O QUE SIGNIFICAM OS IDEAIS ASCÉTICOS?(1) Sobre os dramas do destino da alma - Odemar Leotti

Há um fato fundamental da vontade humana?

Esse fato fundamental da vontade humana consiste em seu horror ao vácuo: ela sempre tem necessidade de uma meta – por isso, prefere antes querer o nada, a não querer.” Nietzsche. p.54

Estranhando e (des)construindo a frase

Ao ficar no impasse entre colocar frase ou parágrafo, como o que queria desconstruir, lembrei que no meu tempo de criança-educando, a professora, com seu jeito meigo proferia o seguinte enunciado: peguem lápis e caderno e vamos escrever uma sentença! Hoje quando da discussão com um interlocutor sobre este assunto. Lembrei que quando criança, falava-se mais em sentença que em frase. Com isso liguei a palavra sentença, da sua pseudo-inocência com tudo que ela tinha de perigosa. Isto foi me levando a lembrar de outros mestres que servem-me para que eu possa pensar junto com eles. Lembrei de Holderlin, pensador da virada do século XVIII para o XIX. Ele afirmava que as palavras são como parábolas: servem para viver e servem para matar. Lembrei-me de Deleuze que afirma em sua obra Capitalismo e Esquizofrenia, que:

A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado-sujeito de enunciação etc). A unidade elementar da linguagem – o enunciado – é a palavra de ordem. Mais do que o senso comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade abominável que consiste em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. DELEUZE (1995).[i]

O que estamos analisando neste texto, é a força que as palavras, após serem conceitos que esqueceram que o foram, e se tornam como algo natural, como ferramenta de comunicação, passam na verdade a funcionar como uma ordem. Deleuze, lembra de Spengler, que entende as formas fundamentais da fala não são o enunciado de um juízo nem a expressão de um sentimento, mas ‘o comando, o testemunho de obediência, a asserção, a pergunta, a afirmação ou a negação”[II]. Para Deleuze, nossa vida é comandada por frases muito curtas, que mesmo parecendo estar a nosso serviço, são inseparáveis dos empreendimentos ou das grandes realizações: “Pronto”, “Sim”, “Vamos”. O que tratamos neste texto é como que obedecemos a conceitos, como se natural fossem e como são carregados de uma força que faz funcionar nossos desejos. Fazem-nos trocar o impulso pelo empuxo. Já nos dizia Foucault: fazemos com os outros com o que fizeram coma a gente. A educação perde seu sentido altruísta e passa a partir desta análise do sistema de pensamento, como uma forma de sentencia-la, de aplicar-lhes uma ordenação e entrega-lo em honradas solenidades ao sistema para cumprir sua sentença. Vejamos o que nos cita Deleuze:

As palavras não são ferramentas; mas damos ás crianças linguagem, canetas e cadernos, assim como damos pás e picaretas aos operários. Uma regra de gramática é um marcador de poder, antes de ser um marcador sintático. A ordem não se relaciona com significações prévias, nem com uma organização prévia de unidades distintivas, mas sim o inverso. A informação é apenas o mínimo estritamente necessário para a emissão, transmissão e observação das ordens consideradas como comandos.

Este grande pensador, busca em Parain o entendimento da suposição ou do pressuposto na linguagem, relacionados a essas ordens dadas à vida. Mas Parain, segundo Deleuze, ele vê, nestas, menos um poder no sentido político do que um dever no sentido moral.Podemos entender então que a construção da vida como uma história de uma dívida que se possa traduzir um dever, produzida por uma falta, como diria Foucault. Ao nascermos sob o paradigma de um não-lugar da perfeição e de que precisamos entregar nossa vida como forma de pagamento por esta sentença, passamos a entender a linguagem como a ferramenta que nos forma, que forma nossa memória no sentido de que a vida é uma dívida para com uma verdade, uma moral, diria Nietzsche. Portanto é importante entendermos junto com Parain e Deleuze de que: A linguagem não é a vida, ela dá ordens à vida; a vida não fala, ela escuta e aguarda. Podemos pensar junto com Deleuze e Parain de que toda palavra de ordem, mesmo de um pai a seu filho, há uma pequena sentença de morte – um Veredicto, dizia Kafka. Poderíamos alongar mais neste estudo maravilhoso de Deleuze, mas o usamos o suficiente para nos entendermos nos estudos dos ideais ascéticos e, de tudo que proliferou depois dele e com ele e que dourou as falas de tantas arrogâncias ingênuas e sonâmbulas. Estudemos e estranhemos as palavras, elas foram feitas para serem explicadas e não para explicar. Elas não explicam nada. Elas dão ordens.

Os fatos
Os fatos não é algo primordial que tenha sido instituído como força extra-humana, que já estaria inscrito no mundo, ou na terra de onde extrairíamos a verdade que serviria de parâmetros para nos guiarmos como seres viventes. Os fatos, como nos afirma um espírito livre, é sempre algo produzido pelos homens, portanto nada é natural, torna-se com aparência natural após se tomar de positividade e passar a servir como referencial para nossa vida. Usamos estas palavras, ou melhor, estes conceitos como se fossem o mundo, a verdade e esquecemos que emergiram a custo de guerra e sangue num outro tempo, numa outra contingência histórico espacial. Portanto, aludindo ao espírito livre de Paul Veyne, fatos não existem, o que existem são interpretações que, ao tomarem positividade, se tornam fatos, e são usados como moedas gastas, que não se lêem mais a efígie, são utilizadas apenas como moedas de troca no mercado das relações sociais.

Fundamentos
Para que possamos crer que existam fundamentos é preciso vê-los por dois âmbitos: como fruto de uma lócus identitário, próprio de uma multiplicidade cultural que serve como uma ferramenta de coesão cultural e que pode ser constantemente modificado entendendo-o não como algo absoluta e primordial mas como dispositivo humano-cultural que pode ser modificado de acordo com a circunstância histórica. Neste caso, o que é tido como elemento mais importante é a vida. Assim pensado a cultura teria como papel estar a serviço da vida e não a vida a serviço da cultura. Entendendo melhor, uma sociedade assim não colocaria valores absolutos em fundamentos. Com isto tentam manter em inconstância as ferramentas para a vida. O que dever ser colocado como prioridade é a vivência saudável dos seres integrantes de tal cultura. O sentimento de pertencimento, neste caso, deve ser zelado por todos de forma que a vida garanta as diferenças e mantenha a convivência.

No segundo caso, os fundamentos são colocados como via única e devem ser intocáveis. Tudo o que no primeiro caso é considerado como diferença e que deve ter uma cultura que cultive estas formas de emergências humanas, garantindo uma forma saudável desta convivência no caso segundo, os fundamentos são considerados como primordiais, imutáveis e tudo o que tentar modificar sua originalidade deverá ser considerado como errado, falso, aparência imperfeita, etc. Neste caso, por incrível que pareça, estar seguro é cultuar uma forma original de vida, e ajudar a castigar tudo aquilo que possa modificar sua estrutura rígida. Portanto, para começo de conversa, já estranhamos duas palavras da frase inicial. Vamos ver mais alguma coisa?

Fato fundamental
Bem, neste caso já foi feita uma junção dos dois conceitos. Fato + fundamento: unidos já em si formam um enunciado mais forte e se nos (des) atentarmos formam uma verdade. Se fato é interpretação e não algo primordial, ou seja, como se fosse uma Qualitas Oculta, que já existia, e que foi posta para indicar, de forma absoluta, para que bastasse aos homens a elas se ater e ter fé e nunca duvidar. Este termo Qualidade oculta é, explicado por Nietzsche, como se já existisse antes dos homens um mundo de qualidades indubitáveis, que não pudéssemos jamais duvidar ou deixar de nos aproximar, para que pudéssemos alcançar para termos uma vida perfeita. Vemos que a historiografia tem buscado isto o tempo todo, e que isto tornou-se de uma positividade tão absoluta, que transformou-se em manuais de nossa educação. Portanto, não há nada de excepcional quando cremos em algo como alma suprema, Idéia superior, Deus, Razão, etc. Assim, nossa forma de ser no mundo fica restrito a esse obedecer. Por que isto acontece? Será que esta forma tem a ver com o texto anterior que entende a vida como uma dívida? Será que crendo na existência de um fato fundamental que antecede à vida humana. Portanto, se entendermos os fatos como interpretação histórica e não como algo primordial, podemos entender os fundamentos como algo fruto da interpretação humana e, se isto está entendido assim, podemos dizer que os fundamentos não passam de interpretação feita pelos homens em suas contingências históricas. Querer tratá-las como algo absoluto servindo para todo o sempre é o mesmo que oferecer as vivências posteriores em holocausto a um fundamento. O que está acontecendo com nossa educação a não ser ficar presa a fundamentos esquecendo que é a vida que produz cultura e não cultura que produz vida, numa forma única e imutável. Neste caso, o que é lastimável é o fato de tentar a manutenção de uma forma impostora e despótica de cultura, que coloca como formas erradas, os surgimentos das diferenças como possibilidades de sua modificação. No caso da historiografia, somos testemunhas de quanto fomos utilizados e, nos utilizamos de conceitos tidos como primordiais e o quanto os impusemos aos nossos alunos. Ainda hoje há um desconforto quando tentamos dizer aos nossos “intelectuais iluminados”, que não podemos ficar reféns de uma história fundamentalista. Ainda é caso de reprovação, de impedimento de vagas em pós-graduações. O sonambulismo intelectual ainda impera em nossos meios, impondo ementas tidas como a história verdadeira. A história econômica, a história estruturalista, ou seja, a história de vínculo marxista, habitou e ainda habita nossos meios acadêmicos.

I-DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. . Rio de Janeiro: ed. 34,
1995.
II-idem. P. 12.
www.marxists.org/subject/art/visual_arts/painting/muralists/angustia.jpg

2 Comentários:

  • Parabéns Deferenti!
    Recebi o link de seu Blog pelo orkut.
    Gostei do pouco que li e já coloquei o blog na minha lista de favoritos.
    Vou passar a vir aqui mais vezes já que Deleuze, Guatarri, Nitx e outros que ainda não conheço também dão as caras nesse espaço.
    Até mais!

    Por Anonymous Anônimo, às 9:32 AM  

  • seja benvindo luciano. escreva também e manda para iziquielcarvalho.com.br e colocaremos no blog com o maior prazer. abraços

    Por Anonymous Anônimo, às 5:12 AM  

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