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quarta-feira, setembro 06, 2006

POSSIBILIDADES HUMANAS OCULTAS - Odemar Leotti

As dimensões humanas são espaços que não devem ser colocados de lado em nossas buscas do entendimento quanto ao que nos coloca o documentário (QUEM SOMOS NÓS?) sobre o intangível da produção. A relação dos homens com o mistério tal e qual nos oferece as coisas como forma de atingirmos um sentido que nos faça pertencentes ao mundo, pode ser deslocada da busca das objetivações para as formas literárias através das quais as ciências humanas se utilizam para construírem suas linguagens de nominações das coisas. As coisas não têm sentido por si, e sim pela descoberta que lhes fazemos pela poética produzida pela escrita que utilizamos para tal procedimento. Existem possibilidades humanas ocultas que se desenvolvem em uma produção infinitesimal. O poema e seus versos são de uma elasticidade sem fim. O verso, o versar sempre estão à espera do ser. Versões constroem saberes-vida. Com os versos nós versamos nossos desejos e construímos para eles, um lugar que nos entendemos como habitantes deste mundo. Poder pensar formas desejantes, participar de uma instituição é inscrevê-la. Escrever e inscrever-se numa escrita que foi feita pelos seus usuários. Esta escrita tem de estar cumpliciada com seu tempo e com seus protagonistas do dia a dia de dores e alegrias em suas experiências de cada tempo. Portanto, aí saímos do conceito de dialética como forma de entendimento do sentido humano. Neste sentido a evolução humana se dá pela luta dos contrários numa renhida disputa de superação até se encontrar um final feliz do vencedor. Neste caso atualização tem um sentido de superaração e refutação. Por outro lado, entendemos, com Foucault que existe um conjunto de regras que garante um modelo e não outro de discurso sobre evolução.
É no domínio da escrita e não das leis da natureza que se dá a possibilidade de nos apropriarmos da possibilidade de participarmos da trama da construção do dizer sobre a vida.
Para que possamos nos inscrever, portanto deve haver um acesso à escrita e com isso a possibilidade de participação na trama de constituição de nossa própria forma escrituraria da vida. Nossa forma de pensar o mundo. Precisamos então romper com um conhecimento que está separado da vida. Um conhecimento que se institui distanciado do mundo de nossas sensibilidades, do mundo do sensível. Como disse Artaud,

Nunca, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e cultura. E existe um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para dirigir a vida. (Antonin Artaud: O teatro e seus duplos)

Este saber que nos quis feliz fora de nosso tempo presente, que nos quis como ovelhas sacrificadas, agrilhoadas que ficamos a uma metalinguagem que nega as formas como produzidas pela linguagem em seu cotidiano, que nega formas criadoras a seus protagonistas desse cotidiano, negando a linguagem mundana.
As pessoas não precisam de uma linguagem presa a um centro que aprisiona a interpretação modificadora. Elas precisam de ferramentas instrumentalizadoras, de ferramentas da linguagem para a construção que abra o mundo. Não é preciso uma linguagem que decalca um centro como cópia da perfeição. Não deve haver um saber que feche o mundo. Ler é dar-se a abertura do mundo através da nominação das coisas com uma escrita de um saber em que haja a participação em suas tramas. Ler é abrir o mundo, é fazê-lo emergir cheio de beleza. Escrever é firmá-lo, é inscrevê-lo como realidade livre de uma escrita descarnada estéril de vida fremente. Escrever é pensar para o nada, garantindo sobre o ocaso um sentido ocasional e não definitivo. A informação deve ser cria de seus protagonistas. A potência humana se dá a impulsionar o corpo desejante diante de algo ainda inexistente. O objeto não está pronto e com determinação enquadradora. As palavras podem transformar um corpo para o bem e para a dor, como nos mostra o documentário. Como afirma Hölderlin, pensador alemão do início do século XIX, as palavras são como parábolas, servem para fazer viver e servem para a morte. O termo possibilidade pode ser desconstruído como sendo o caminho da posse da vida precisando da aquisição da posse da habilidade para sua apropriação. Portanto, o ser humano é o único animal que necessita das palavras em suas ilhas de linguagens para se apossar de sentidos construindo-os ou não, para que se tome de sentido e para se afirmar como pertencendo ao seu mundo. Portanto, o pensamento não pode ser ignorado no que tange a virtualização como concretização do real. A memória encobre visões ou um conjunto de regras e leis fazem com que nos localizemos pelo saber que nos apague o sentido que seria eficaz a nosso viver. Isso se dá por não sermos, muitas vezes partícipes da trama de sua construção. Somos enredados por narrativas que nos distanciam de nós mesmos.
Experiência é coisa íntima, tal qual liberdade foi feita para ser instrumento de libertação da experienciação, não com saber cientificado e garantidor de segurança, nem como saber que entende experiência como acumulação de saberes para serem utilizados nos tempos finais da vida. Experiência é forma de dar vazão aos impulsos do corpo, garantindo sua infinitude de fluxos que se produzem graças ao infinito do mistério. É assim que se manifestam as realidades.

Rondonópolis - 06 de Setembro 2006 - 23h.
Foto:www.setur.rn.gov.br/fotos/103.macau.conchas.jpg

1 Comentários:

  • Mistérios...Magias...Mistérios...
    Clarice Lispector diria: "Sinto que sou muito mais completa quando não entendo", Ou Raul Seixas que alertaria:"Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo".Manoel de Barros acrescentaria: "As coisas que não existem são as mais bonitas” Antonin Artaud completaria: “Nós ainda não nascemos... Ainda não estamos no mundo... Ainda não existe mundo... As coisas ainda não se fizeram... A razão de ser não foi achada”.
    Mesmo assim, Mestre Odemar, não seria nenhuma surpresa depararmos com os ‘donos dos saberes’ “capazes” de cientificizar até sentimentos, e assim dividi-los, normatizá-los, explicá-los, etc. E mais, amparando suas falas em alguns teóricos, fariam de suas elucubrações verdades absolutas.
    Dá nos algum alento ler/ver textos como este seu mostrando que: “As coisas não têm sentido por si, e sim pela descoberta que lhes fazemos pela poética produzida pela escrita que utilizamos para tal procedimento”.Ou ainda, que: “Não é preciso uma linguagem que decalca um centro como cópia da perfeição. Não deve haver um saber que feche o mundo. Ler é dar-se a abertura do mundo através da nominação das coisas com uma escrita de um saber em que haja a participação em suas tramas”.
    Poesia neles!!!!

    Parabéns pelo seu belo texto.

    Por Anonymous Anônimo, às 4:27 PM  

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