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domingo, fevereiro 28, 2010

O SER O O VAZIO

Odemar Leotti

Eis o homem que imagino conhecer
Eis uma composição trágica.
Não se completa por não ter sido completo
Não se determina, pois não tem origem determinada
Faz-se no ser, um fazer de um instante iminente
Desfaz-se com a mesma indiferença em que se faz
Frustra-se ao tentar estirar além de si na busca do eterno
Só pequenos momentos é o que lhe resta de lembrança
No afã do linear, lhe resta a circularidade motora
Eis tu homem, um pouco grego, cristão e moderno
Um pouco de Ulisses buscando sua oikos
Nessa sua frenética caça do tempo perdido
Às vezes fere de morte seu corpo, morrendo no Gólgota
Que alimenta seu sentido de renúncia
Diferencia-se dos outros animais pela falta
Vive como um ser indigente pedinte de sentido
Na ânsia de algo que dê sentido à sua existência
Sem imaginar que apenas lhe resta alimentar-se de palavras
Seu espaço é um vácuo, um vazio um nada que aterroriza
Que o faz de forma desesperada firmar-se com histórias
Histórias produzidas com restos mutilados de histórias
Carcomidas por milênios de apropriações e usos vários
Quantas histórias. Quantas verdades fizeram das palavras
Quantas narrativas pavimentaram os pântanos do terror
Chãos instáveis onde cada ser tenta instalar-se como verdade
Tentam dar sentido a si mesmo, construindo a fuga do nada
Construindo, diz Larrosa, como um ser de palavras
A partir das palavras constitui-se na ilusão narrativa
Há que se tentar depressa com as palavras, diz Beckett
O que tentar ele ignora, não importa, diz o poeta da vida
Nunca o soube, tentar que elas me conduzam à minha história,
Acredita Beckett, que as palavras que restam...; há que dizer
Palavras, enquanto ainda existam, há de se dizê-las, até que me encontrem
Até que encontrem Beckett, até que o ouçam dizer, estranho castigo, estranha falta, há de se seguir...
Inserir na narrativa, dar formas às palavras, constituir-se em novela
Construir a ponte entre o eu e o mundo, responder ao desajuste, ser indivíduo
Responder a angustia que nos alicia e que quer de nós o evidente e resolver o estranhamento
A inquietude que nos provém da imprevisibilidade do instante
A agonia da possibilidade da morte, do fim inexorável e terreno da criação
Do agora carregado do eterno viver no limiar do instante
Ou da entrega à previsibilidade do futuro, a felicidade dos fins últimos
Eis a dor do animal feito da falta, que constrói fora de si o para si
Este saber que mora no quintal exposto aos perigos dos fantasmas
Este ser desprotegido e indigente que lutamos para ser nosso aliado
Que nos foge que não combina com nosso sonho, que nos faz de vigília
Que nos aterroriza em nossos pesadelos quando o sonho abre a porta
Quando estamos a mercê do não eu do ser carcomido pela fuga da sua imperfeição
Eterna imperfeição como o navio que não consegue ancorar em seu porto
Pois não há mais porto e era só uma miragem,
Um alvo que não existe mais ou nunca houve mesmo,
Coberto pela névoa das palavras que não quis me aquietar
Este lugar obscuro que não consigo vislumbrar é miragem difusa
Palavras que as faço minhas constroem mosaicos de verdades
Instauram portos flutuantes que inflam bóias de ilusões e me salvam
Ajudam-me a instalar um lugar para a âncora que ameniza meu desassossego
É o meu insuportável falatório às pedras que me ligam ao chão do cais
Lanço-me ao mar na busca da terra: eis o meu paradoxo, eis meu terror
Lanço-me na busca da fuga da insuportável certeza de que não existo
Da certeza de que palavras, em contos e lendas formam o meu terror
Que é saber de minha indigência que é a minha própria in-existência
As palavras que Rousseau não quis acreditar que compunham sua infância
Ancorar o eu descansar o ser, descansar o corpo confesso de Rousseau
Colocá-lo no resguardo de tudo que o ameaça, assegurar sua identidade
Garantir a todo custo como que fosse possível sua continuidade intacta

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