AGUA RIZOMÁTICA -VIDA DESENCANADA - Odemar Leotti
Segundo Bauman, a água pela sua propriedade líquida, tem como característica ser volátil ao tempo e conformadora ao espaço. Às tentativas de seu aprisionamento a um caminho se depara com sua volatilidade e sua conformação, porém com sua propriedade de se enfiar nas menores fendas e as arrebatarem produzindo por meio dessa potência aquilo que parecia uma condenação eterna. Assim podemos dizer que ela é volátil e se adapta a qualquer circunstância de formas, porém à primeira fragilidade do cano ela jorra alegremente para a vida. Ela passa então a se determinar por si mesma. E a vida, e o homem? O que determina o homem moderno na questão de sua liberdade e de seu limite? Quem é o homem, o que é o homem quando ele não mais se determina por nenhuma transcendência ma apenas por si mesmo? Aqui deparamos com uma confusão que se faz, quando ficamos entre o ser racional ou ser chamado de irracional. O homem tem necessidade de construir uma racionalidade única e definitiva ou nenhuma racionalidade. Tem que conviver com uma busca da essência ou nenhuma. Eis aí um ponto que gera conflito. Os que crêem numa via única da metafísica e chamam de irracional os seus detratores e os detratores que temem afirmar a necessidade da essência. Foucault nunca negou a necessidade da razão. O que ele condena veementemente é o sonambulismo histórico que criou esse vir a ser metafísico do século 18 e o materialismo dialético que se utiliza de uma criação literária que ser quer única e verdadeira e se coloca em oposição a tudo que seja humano. Para Deleuze não há esse binarismo de verdade e negação da verdade como espaço único de produção da vida. Para ele as duas formas pertencem a dois espaços. Logo, não são contraditórios e sim diferentes, e assim devem se auto tolerar. Portanto, precisamos sim de essência para viver. As coisas não se oferecem como coisa em si, e sim como necessidade de significação. Mas a distância entre a fabricação contingente de essencialidades, com suas diferenças espaciais e temporais são realidades. O que não se pode é dedicar nossa existência a uma estratégia metafísica transcendental monocórdia, única e que encana toda possibilidade de hastes criadoras de novas ramificações de vidas em suas multiplicidades morfológicas.
Para Hölderlin "está em jogo a realização do homem como um aviar-se para a totalidade”.Abandonará a si mesmo como fruto de os pré-cursos para abandonar-se à 'terra incógnita' da totalidade. Esse sair do cano poderia ser referenciado a ‘esse sair de si a fim de abrir-se para a totalidade’ é que dimensiona a essência humana como 'a via excêntrica, aquela que o homem percorre, universal e particularmente'. O que a água quer garantir é o percurso e a possibilidade de realização de seus fluxos impulsionadores. O que esperaria o homem da vida? Uma origem e uma finalidade e a conformação a uma encanação transcendental que tem uma essência originária e sua busca nos tempos finais. Aí vale a pena ter os sentidos presos ao encanamento eterno rumo ao jorro na usina final? O que se quer colocar é que ao invés de haver uma vida como autodeterminação do percurso, das condições de cada um situar-se na terra incógnita e a possibilidade de criação para garantir a vida em seus fluxos o que vemos no discurso moderno? A educação no lugar da formação como apreensão do percurso. A via de formação dá lugar à educação como uma vida encanada na verdade metafísica iluminista-platônica. A vida requer a contínua formação para o percurso e não para o fim de uma estrada, de um leito de rio. Determinar o futuro requer a anulação da vida em seus fluxos, a paralisia de um percurso em suas peripécias. A água livre escolhe o caminho a seguir, enquanto quando é encanada fica presa a um destino, sendo anulada em sua possibilidade de vida com seus mistérios e acasos. Fica imune do perigo do obstáculo, mas é direcionada a um fim. O seu percurso fica restrito a um fim. Perde sua possibilidade de vida como percurso, como sendo aí a vida mesmo. Numa carta de 1794, Hölderlin afirma o seguinte: "Ademais acabo de voltar da região do abstrato na qual cheguei a me perder e a perder todo o meu ser". Para ele a profundidade está na superfície das coisas e não em um sistema de pensamento. Como a água está no cano sempre na possibilidade de jorrar para a vida, os homens estão no encanamento pronto a jorrar-se também em vida. O sistema tem suas instituições que ficam vigilantes consertando o encanamento para que não dê vazamento e possa impossibilitar o caminho dos homens rumo à usina final, ou como explicam: a um progresso humano. A água abre mão do caminho seguro para buscar o caminho venturoso. Unidade como ventura perdeu-se para nós, afirma Hölderlin. Segundo ele, "o ser, no único sentido da palavra, perdeu-se para nós e nós precisamos perdê-lo quando ambicionamos, quando combatemos". Viver seria um arrancar-se da totalidade na unidade, seria um arrancar-se de nós mesmos, seria uma liberdade dos instantes múltiplos e não uma liberdade dos tempos finais que encana a vida e a não quer mais para o presente como uma ventura, com seus perigos. Numa compreensão de Maria Cavalcante que prefacia sua obra, o aviar-se na conquista de nós mesmos se dá por uma via excêntrica, que é o pensamento vital para Hölderlin, nos coloca diante de uma existência nômade. Para ele o que justifica a apreensão nômade da existência, pergunta Cavalcante? "O Sedentário permanece nômade quando, para compreender, precisa caminhar. É na compreensão que o nomadismo excêntrico do homem se cumpre, mesmo num mundo incapaz de consagrar o passado e pressentir o futuro. O homem não nasce para cumprir uma via excêntrica somente, mas para se realizar no fazer constante e descontínuo dessa via. Ela se dá não a partir de um centro a procura de um norte e sim de um norte produzindo seus centros, assim falou Hypérion pela boca de Hölderlin. Um percurso onde precisamos compreender para construir e para no mundo habitar. Eis aí a venturosa vida. Um saber para o nada, para no nada se fazer em vida. No percurso dia a dia fazendo na via a criação do instante. Compreender como uma co-produção do mundo em sua via. Um co-criador do que existe em coisas. O homem como as águas precisam achar saídas para a vida, sem precisar de canos para a eternidade final. A libertação final rouba a liberdade que produz-se no caminho e não no fim. A vida é o agora do percurso e não o fim que só existe na abstração. É nessa terra incógnita que precisamos viver. Não a uma vida
encanada.O verbo SER se dá no emaranhado do mundo e não fora dele. Não temos que aprender para onde vamos e sim onde estamos. O onde é no caminho, é um co-aprender para co-apreender. Nada fica completo, nada é completo e pronto, tudo é provisório em suas multiplicidades de instauração. A vida se dá nesses verbos ser ou não ser. Ou somos ou não somos. A vida se dá por fluxos como a água que jorra. Precisamos a compreensão para co-aprender e co-apreender a vida na riqueza de seus fluxos. “A vida se dá por fluxos e não por miséria”. A compreensão se dá em consonância com o emaranhado do mundo, esse rizoma e não em oposição ao mundo como quer os lógicos dialéticos. Inspirado em Hölderlin saiu isso há uns tempos passados: A beleza habita na sutileza da divindade poética. A aridez dá lugar ao maravilhamento. Os olhos ganham o encantamento. Faz-se vida. Vida como um sendo eterno. Uma eternidade da criança num fazer e desfazer-se pelo esquecimento. Hölderlin falando: "Muitas vezes, nos exaurimos sem poder encontrar a matéria para nela ancorar os pensamentos". Antes aconselha: “Oh! Não deixes que tua rosa empalideça, juventude vigorosa dos deuses! Não deixes que tua beleza envelheça nas misérias da terra. Essa é minha alegria, doce vida! Que resguardes, dentro de ti, o céu livre das preocupações. Não deves sofrer de indigência, não, não! Não deves ver em ti a pobreza do amor” (p.83). À vida não cabe a pré-ocupação. À vida cabe a ocupação. Não a reprodução e sim a produção. Não a representação, mas a presentificação. A vida é um sendo constante, um ser-no-mundo afirma Heidegger. Fala Hölderlin: "Tu não querias um ser-humano, queria um mundo. Recebeste a perda de todos os séculos áureos compactados em um único momento de felicidade, querias substituir o espírito de todos os espíritos de um tempo melhor, à força de todas as forças dos heróis em um único homem - Vê como és pobre e como és rico? Por que deves ser tão orgulhoso e tão abatido? Por que alegria e dor em ti se alternam de maneira tão assustadora?" (p.85).
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