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sábado, abril 22, 2006

ROSTO...


Seu rosto, sua pele, seus poros... Ventos jogam seus cabelos contra suas faces umedecidas pelo orvalho. Quase morto este rosto umedecido, só os cabelos balançavam, só eles e as folhas da relva ao contrapor o vento. Olhos paralisados miravam o nada do horizonte que levavam ao lugar algum. Nada. Nada. Nada parecia existir de vida. Era somente a imensidão no olhar e o abismo que separava aquele ser da vida. A vida estava desatada do ser naquele instante. O que ata a vida ao ser? O que é, ou vem a ser a vida? O que somos nós? Qual é a relação entre nós e as coisas? Como elas se dão? Tudo isto pululava o pensamento daquele ser, da dona daquele rosto inerte. Estava “certa” que buscara a certeza, mais ela parecia esvaziar-se, esvair-se. Ao mesmo tempo, instante que era a morada do agora estava como num paradoxo esvaziado de conteúdo. Aquele rosto ficava mais empalidecido ainda. Pensava como sair do lugar que a dejetou naquele lugar não-lugar. Seu ser parecia um carro que parava de andar na auto-estrada, que achava uma Meca da modernidade, e que agora havia saído para um dos seus lados e não conseguia voltar. Não queria voltar, mas precisava voltar. Só a auto-estrada leva ao lugar certo. Se não voltasse sentiriam sua falta. Se não quisesse voltar seria tachada de louca. Parecia que sua instantaneidade estava em jogo. Parecia que não mais funcionava normalmente. Estar livre não parecia ser daquela maneira. Ela só poderia se dar sem sair da auto-estrada. Tinha lido de um pensador que o acesso fundamental à instantaneidade é crucial. Mas pensava como aquele instante ficaria como normal se ele estava destituído de razão? Ela sentia algo irracional. Será que é real. Será ela ou serei eu? Seria o imprevisível uma fenda para a liberdade? Mas a liberdade não haveria de ser alcançada de forma esterelizada sem o risco de eu estar como estou agora. Depressiva, doentia, dolorida, sentindo-se um corpo estranho na sociedade. Se não quiser seguir em frente, neste caminho infindo contra quem deveria me rebelar? Assim aquele rosto inerte pensava. Ao analisá-la a um descuido, e o tempo mudava de lugar o verbo de seu pronunciante. Começava com ela e passava para eu, desafiando o espaço que nos separava. Ao mesmo tempo pensava: o que nos separava com tanto frouxidão, com tanta leveza que fazia com que a terceira pessoa passasse para a primeira traindo nossa vigilância? Portanto neste meu depoimento do que vi, perdoem a instabilidade verbal. Tentem me defender perante os fiscais alfandegários da gramaticalidade imutável, quadriculadora que classifica os tempos como se os poros não se tocassem. Esperem um pouco, preciso voltar a olhar aquele corpo distante e logo ali, e numa distância louca, que desafia o espaço e faz com que me volte contra mim e me confunda com ele. É dela que quero falar! Será que é isso uma verdade ou uma falácia? Será que falar do outro não seria uma fuga do falar de si mesmo? E se já não somos mais tão hábeis na vigilância do espaço do individualismo porque ainda falamos de seres verbais separados? Eu, tu, ele, nós, vós e eles. Era assim desde pequeno o que aprendi. E de que adiantou se aquele ela territorialisou meu corpo, meu ser e já não sei mais o que fazer para continuar a narrativa. Ainda bem que existem as professoras de português para corrigirem nossos textos e separarem os tempos verbais. Dizem que isto é erro gravíssimo. Ainda bem que a poética escapa de ser considerada pobre graças ao calçamento feito pelos gramáticos na correção. Correção? Será que nosso texto quando mistura tempo verbal está errado? Mas não foi o verbo que se misturou. Foi meu ser, ao analisar aquele corpo, aquele rosto destituído de vida parece que sem querer fui analisando meu corpo que mesmo parecendo constituído de vida estava sendo analisado no lugar dela. Será que aquele rosto mesmo sem me fixar me denuncia? Aquele rosto é de quem? E se nós rebelarmos com nossos guardiões gramaticais? É meu aquele rosto? É dela somente? Ou é o rosto do leitor? Rostos singulares e tão parecidos, ou múltiplos rostos? Olho para o espelho... Qual espelho? Não havia espelho por perto. Olha, eu vim aqui só para olhar o outro rosto. Ele estava inerte e vagava o olhar. Aquele rosto era de alguém que eu conhecia. Você acha ele parecido com alguém? Leitor, cadê você, está me ouvindo? E eu onde estou? E aquele rosto? De quem será?
Autor:Odemar Leotti
Fonte foto:www.paralemdozero.blogs.sapo.pt/arquivo/rosto.jpg

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