.

sábado, abril 08, 2006

GRAVANHAS , OU ESPÍRITOS SUJOS DE CHÃO.


Poética é um lugar indizível, indivisível, indiviso: lugar da poesia, da criação provisória e sempre provisória numa luta infinda, como um fluir constante de existências insondáveis. Lugar não-lugar, ainda e sempre um não-ser sendo do lugar. Lugar como centelhas de não-lugares, centelhas que faíscam como no tilintar das espadas. Espadas que não voam, não faz vibrar suas lâminas de aço a não ser pela vontade guerreira de seu empunhador. Faíscas, eis a poesia, lugar do perigo, do saltar para pensar no ar. Esse lugar onde a vida é forma de exercício de um poder incontido e incomensurável. Somos esses exercícios feitos de toque nas palavras assenhoreadas, de palavras apropriadas peã nossa estética de recepção, que fazem nascer e desaparecer sentidos, num fluir constante e ininterrupto. Faíscas, eis a poesia se pondo em abundância pela vazão aos jorros da vida como fluxos impulsionadores. Faiscando a alimentando o fogo da paixão, esse lugar perigoso que nos espreita e que só nele é que se exerce a vida. Somos frutos destes ocasos, e ocasos criamos para fugir do perigo da estagnação do ser. Fugir sempre do terror da indigência do ser, eis nosso destino. Pegar o fardo e ir, eis o nosso destino. A vida é esse fardo constante de inventar um invólucro onde possamos armar nosso ninho. Onde possamos nadar na vida. É nessas águas que se formam as tribos, os grupos, os mais pequenos e as imensidões dos grupos. É nessa água que nadamos, na nossa língua, na linguagem que criamos para nela construirmos, de forma ingênua, nossa morada na vida. Deixar as palavras na dança dos espíritos que nos religam ao chão que pisamos, deixai esses espíritos tocarem as palavras, se apoderarem das coisas e fazer mundo. Sentimos nessa hora do perigo do salto, do jogo, como um timoneiro assustado entre o medo das tormentas e a vontade de nelas se lançar. Olhos estupefatos, tremor no coração: memória silenciosamente guardadas; de/coração. Como dizia o poeta: o que vai ficando para traz volta pela recordação, como um voltar pelo coração, num buscar de partes do mosaico da alma de nosso viver. Mimeses-elos, mimeses como líquido vaginal que se mistura com o sémem do homem, num sacolejar delirante da efetivação de uma dança da vida. Uma dança de semens e de óvulos. Células dando sim a vida, sabendo do enfrentamento da moral racionalizante que tenta criar no ser o empuxo para encarcerar seu fruto: o ser vivente. Conter o impulso, distribuir o prazer numa esteira de controle para somente procriação. Como lembrando de Clarice Lispector, a vida começa com um sim: uma célula diz sim a outra célula. Eis a vida. Depois se instaura uma moral e diz não a tudo que seja o impulso do desejo, eis o fim, eis a mumificação da vida. Dizer sim à vida é lutar para que ela não se petrifique. Deixar células em funcionamento para que a vida se dê como no tilintar das espadas da vida dos seus guerreiros. Ser bom não é ser manso de coração, ser bom é ser guerreiro. Só os guerreiros é que acendem as chamas dos corações de suas amadas.Palavras: tudo começa com essas palavras. Assenhoreadas pelos espíritos enxertam as coisas num sacolejar constante. É o fluxo Holderlininano de uma vida que se dá pela abundância. Semens e ovários, sexualiza a ação, quebram palavras, junta-se signos, suja-se de chão. Ah, agora sim, a poesia enfim como um espírito sujo de chão, como afirma o poeta Manoel de Barros, como "Gravanhas", como o rio do menino pantaneiro, que na poética do espírito e chão, chorou em poética se incorporando no seu ser menino quando se viu invadido seu ser pela palavra da ciência que fez seu rio deixar de ser uma cobra de vidro para virar uma enseada. Para sua tristeza aquela "cartilha científica", matou sua "cobra de vidro" ao obrigá-lo a decorar para provar que ela era na "verdade", uma enseada. Nunca mais viu sua "cobra de vidro": ela foi (dês) poetizada pelo saber verdadeiro sobre as coisas, sobre o lugar que o fazia nadar o dia inteiro. Nunca vais viu a "cobra de vidro", só ela. O fantasma do professor passou a habitar aquela imensidão da águas. A ciência parecia querer tirar a criança de sua perdição entre ela e a natureza, queria tirar e foi lhe matando por pedaços, roubando-lhes o encanto. A ciência, como afirma o poeta, pode descobrir as verdades sobre as coisas, nunca poderá descobrir, nem se deliciar com seus encantos.Portanto as palavras e espíritos se formam na tríade do santo que se enlameia para se formar. Céu e terra em completa perdição. Chão e clarão a erguer-se com os olhos estufados do menino como o nadador que sai com os olhos vermelhos estufados depois de um longo mergulho nas profundezas das superfícies através da embriagues mundana. Relembrando Barros: GRAVANHAS! Como o pássaro que nos causa inveja por poder voar, ele sente inveja de nós, ao divertir-se esfregando no chão: chão e céu: suspensão e firmamento: aprendendo com os pássaros com o que eles aprenderam com a gente. A terra é firmamento: ali eles pousam para brincar, pra comer, para reproduzir, para amar, depois voam: para fugir, para brincar, para encantarem-se. Assim parecem viver os pássaros, de encantamento em encantamento num numa eterna ociosidade que fomos ensinados a repulsar, ao trocarmos nosso impulso pelo empuxo disseminado pela moral platônica. Enquanto os pássaros voam e encanta-se num eterno fazer-se no instante, sem busca de um lugar distante, o que fazemos nós? Tentamos recompletar nossas asas cortadas. Assim podemos voar, mesmo como aquele que tenta recompor seus passos depois de perdê-los por um acidente. Voamos para brincar, saímos do chão para buscar nossos encantos. Vôo da alma desses pássaros que nasceram sem asas e não quiseram ser anjos puros. Preferiram a proximidade das serpentes para poderem viver às sombras das macieiras: sabiam que ela viria para instituir os limites dos desejos, transformando em pecado seus prazeres, implantando o sexo submisso à procriação.Voaram e caíram. Caíram por voarem, mas não ficaram no chão com limite do ser. Voaram, pois ao contrário dos pássaros, nasceram sem asas e não quiseram asas de anjos, asas cortadas pela moral cristão e a racional. Voaram sem essas asas de grilhões e caíram. Caíram e nos semearam e tiveram como parceiros, os pássaros. Pássaros: esses voadores que não são anjos e precisam do chão para viver. Nós também, que abdicamos das asas que nos são oferecidas: essas asas carregadas de grilhões, essas "asas-grilhões". Sofremos às vezes por termos coragem de voar do nosso jeito desajeitado. Voamos com nossas almas aladas que criamos no nosso molde de argila: argila de chão. Ao contrário dos pássaros, nós voamos para nos acasalar, voamos para brincar, voamos para encontrar resquícios de vida nessa aridez da Razão. Brincamos quando vivemos para poder viver quando brincamos. Arrancamos algum sorriso somente quando nos metemos a passarinho. Imaginamos inclusive que males passarão enquanto formos seres passarinhos. Voamos para amar o chão: voamos para beirar o céu que nos expulsou. Voamos para beirar espíritos mais condescendentes e os trazer para o chão, e os sujar de terra: poética de palavras suja de coisas: de coisas sujas de palavras: ESPÍRITO SUJO DE CHÃO!
Fonte:Odemar Leotti
Desenho de Manoel de Barros

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home